POESIA DEU À LUZ
Wanda Cunha ou Wanda Cristina*
Na hora do parto, foi um alvoroço. Poesia, no começo, fez um escândalo tamanho, que eu pensei que seria necessária uma cesariana. Sua idade avançada suscitava uma gravidez de alto risco. Há bem pouco tempo ela havia tido um aborto espontâneo. Mas tudo transcorreu bem, depois do pasmo de dor. Estava ali uma bela quintilha, cinco pequeninos versos que ela foi entregando, quase pari passu, ao mundo. Apenas o primeiro verso saiu em delongado espaço de tempo em relação aos outros. Pensei até que daquela gestação fosse fluir apenas um verso monossilábico. Mas, na medida em que vi verso por verso sair de dentro de Poesia, percebi que ela me daria uma estrofe em redondilha maior, maior do que sua infrutífera primeira gestação.
O primogênito era, sem dúvida, um verso branco, igual ao caçula, com traços da mãe. Os três do meio, esses, sim, saíram ao pai. Traziam uma aparência singular do estilo de Omar Khayyam, ainda que não fossem descendentes do Rubaiyat. Ela e um persa acasalaram-se por um curto período de tempo. Ele, por ironia do destino, supria um amor ao vinho e à música, sempre dormindo sobre as mesas do bar em que morava. Os recém-nascidos ainda não conheciam o pai. Por isso, eu queria dar-lhes nomes, antes que o conhecessem, mas eles eram pequenos demais para que se pudesse definir o gênero de cada um. Não obstante, fiz uma lista de nomes, muitos dos quais as minhas filhas não gostaram: Écloga, Elegia, Ode, Sáfico, Epopéia. Pensei até em Mahabárata, Ramáiana e Sacuntala.
Entretanto, Poesia não estava preocupada com o nome que eu daria aos seus filhos. Seu primeiro momento de parturiente foi de inteira dor, seguida de preocupação e responsabilidade maternais. E foi sob esse clima que se deitou ao lado dos quíntuplos e deixou que eles disputassem seu leite, para depois dormitarem sobre suas tetas...
Em frente da televisão, eu assistia à notícia da mãe que, em Imperatriz, matara o próprio filho. Poesia, ao meu lado, assistia à reportagem sem fazer comentários, entregue ao momento singelo do aleitamento. Ela nem piscava. Silente, exibia um olhar azul, como os seus olhos...
Foi, então, que percebi o contraste da natureza. Mães que amamentam, diante de outras que matam... E lembrei que nunca ouvira a notícia de que algum bicho cometesse tamanha atrocidade. Li, entretanto, há pouco tempo, na Super Interessante, que a constituição física do porco é muito parecida com a do homem. E reconheci, diante do noticiário, que não é apenas a constituição física que define essa similaridade. Afinal, os atos humanos chegam a ser mais torpes e abjetos; os sentimentos, mais obscenos e vis.
Algumas mulheres sentem-se insultadas quando a denominam de vaca. Denominar de vaca uma mãe que mata seu filho, é, sem dúvida, insultar a vaca, que dá de mamar a seus novilhos e propicia ao homem inúmeros produtos utilitários, como a cola e a vacina, extraídas do seu sangue; como o sabão e a tinta, derivados do seu sebo; como os cosméticos e remédios, originados dos tendões de suas patas; como os filmes fotográficos, oriundos de seus ossos; como o fertilizante, de seu estrume. (V. Super Interessante, edição 192, Setembro, 2003).
O certo é que o menor está sendo açoitado amiúde em todo o Brasil, enquanto a maioria cruza os braços. Em cada semáforo de São Luís, por exemplo, há inúmeras crianças e adolescentes jogados à marginalização. E no intervalo de uma limpeza que fazem, com uma flanela suja, a um pára-brisa de carro, eles aproveitam para cheirar cola diante de guardas, cegamente obstinados, que só se preocupam em multar aqueles que furam o sinal. Nos seus silvos alongados, eles não querem saber se o motorista pisou o acelerador com medo de um menor, ou com raiva de um maior que permitiu tamanho vilipêndio. Tudo fica por conta do descaso. E, depois, chegam as multas para os motoristas e para os menores, que são, aos olhos das autoridades e da sociedade hipócrita, os que cometem as maiores infrações no trânsito da vida. Até os pais escondem suas responsabilidades e transferem sua culpa a terceiros.
Enquanto isso, Poesia deu à luz. E não permite que ninguém chegue perto de seu leito para assustar seus filhotes. Depois que pariu, nunca mais deu uma volta sobre o muro. Se fosse humana, não seria tão dedicada. Entretanto, é apenas uma gata siamesa, que não cobra pensão alimentícia pelo desinteresse do gato persa, aquele que lhe deu tão grande prole. Assim, na medida em que leio reportagens sobre pessoas que matam seus semelhantes, descubro que o homem alcança de tal forma seu estágio de imperfeição, que os bichos estão, a cada dia, melhores do que ele. Por conta disso, passo a mão sobre os pelos da minha gata. Ela nem precisa miar. Seu silêncio traduz amor e fidelidade aos filhos. Seu olhar esboça uma prece de carinho jamais ouvida em língua alguma dos homens. Sim, em meio a tantas notícias de infanticídio e de violência contra o menor, Poesia deu à luz. Ainda bem que Poesia não é humana!...
(*professora, escritora, jornalista)
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 19/06/2010