Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
PAREDE TEM OUVIDO
Wanda Cunha ou Wanda Cristina *


Tô de castigo. Sabe o que é castigo de mãe? É levar palmada no bumbum e ficar, assim, de cara pra parede. Tudo por causa de Antônio Filho. Sabe quem é Antônio Filho? Meu irmão menor. Eu não gosto dele só um pouquinho. Sabe por quê? Acho que só ele é filho do papai e da mamãe. E eu não sou...
Mamãe grita:
- Vem cá, filho! – Ela chama o pequeno, toda  querendo dar um abraço nele.
Papai chama:
- Filho, venha onde o papai – Com o óculos na ponta do nariz, o pai joga o jornal que tava lendo pro lado, só pra carregar o filhinho querido.
Mas, se a mãe ou  o pai quer falar comigo, lá vem o berro:
- Maria Antônia! Maria Antônia! Maria Antôôôôôôônia!...

Pior é quando eles tão zangado e a gente tá com visita em casa... Além do olho deles ficar virado, todo torto e a boca também torta, com os dente de cima apertando os dente de baixo, eles me chamam assim: Maria Antônia Guerra dos Anjos!... Parece até que esse meu nome grandão é uma palmada, um castigo, um carão, é isso: um carão.

Minha vó, ela é a única que ainda me chama de um jeito carinhoso: Tonica ou princesa Tonica. Ela diz que nunca vou ficar no canto. (E tô aqui, no canto da parede). Ela diz também que eu tenho o sangue azul, que eu sou uma princesa. Eu sou a princesinha da vovó. Eu achava carinhoso quando ela me chamava assim: “Tonica”. Mas, depois que o tio disse que  “tá nica” é “tá com rabugice” e que rabugice é coisa de gente sem graça, deixei de gostar do apelido da vó. Acho que eu nunca tô nica, não!... Quer dizer, só quando Antônio Filho me irrita.

O pior é como o chato do Antônio Filho me chama: Nanica. Pai disse que nanica é coisa pequena. Pequeno é Antônio Filho, que não passa de uma criança mimada. Eu sou pré-adolescente. Assim como tem o prefeito, o presente, o presépio, o predeiro, tem a pré-adolescente: sou eu. E acho um saco uma pré-adolescente ficar, assim, de cara pra parede, com essa caneta que não escreve...

Sabe por que eu tô de cara pra parede? Por causa de Antônio Filho. Foi hoje cedinho. Quando levantei, a mãe já tava na cozinha passando o café. O pai dava mingau na boca do filhinho querido. (Vê se pode?...) Coloquei a mão na cintura e falei sem maldade:
- Que merdomia, hem?
- Quem é o merdomo aqui? – disse o pai, puxando meu nariz, com um riso na boca.
Falei na ponta do pé:
- O merdomo é...
- O nome é mordomia, não é merdomia, entendeu? – O pai cortou o que eu dizia e ficou explicando um troço que eu não entendi.  

Merdomia ou mordomia? Acho que o certo era mordomia, porque o Antônio Filho mordia a mamadeira e dormia, mas não era o que eu queria dizer. Eu usei aquele nome porque eu achava ele bonito e pensava que todo mundo dizia ele, quando alguém tava sendo paparicado por outro.

A conversa do pai ficou tão chata que a palavra merdomia, que eu achava legal, ele jogou fora, e eu queria continuar usando ela. Ai, saí correndo. Foi quando dei um escorregão na escada...Fui parar no médico. O médico disse a mãe que eu tinha de tirar uma tal de radi... radio... Isso!... ra-di-o-gra-fia.

Eu sempre via a babá falar em rádio FM, rádio AM... Mas radio...radiocaligrafia, não! Essa palavra era nova. Aí mamãe falou que eu ia bater um raio. Eu não sei como. Não tava chovendo. Mas eu tinha que tirar um raio da cabeça, um raio v, x ou z, não lembro a letra. A mãe ficou preocupada comigo.

Desde que Antônio Filho nasceu, que a mãe só fica carinhosa comigo quando eu tô doente. Então, eu quis saber o que tava acontecendo com  minha doença. Se era um raio que tava dentro da minha cabeça e podia estourar meu miolo; ou, se o raio vinha pra minha cabeça, assim, como  ele vem em direção de um espelho e quebra o espelho, quando a gente não tampa ele. Perguntei pra mãe o que era o raio-z. Ela disse:
- é a fotografia da cabeça da minha filha – mamãe disse passando a mão no meu cabelo.

E quando chegou o tal do retrato e que eu vi o retrato... Tá louco!? Eu descobri que tava era morta. Eu tava horrorosa naquela foto. O médico olhou, olhou, olhou....E ainda disse que eu tava bem. Nessa hora, tive que falar:
- O Senhor é médico mesmo? Porque essa foto minha tá horrorosa!.. Eu só posso tá doente demais. Tô muito preocupada, doutor. Essa aí não sou eu, não. Se eu tô assim, já morri.

O médico riu do meu jeito preocupado, mas mamãe se irritou e ainda me deu um beliscão escondido
- Cala a boca, Maria Antônia Guerra dos Anjos – mamãe falou nervosona.

Ela sempre tava nervosona quando dizia meu nome grandão, tipo eu, agora, tô nervosona, com essa caneta na mão que não escreve. A tinta dela já sujou toda a parede....

Mas eu sei por que mamãe ficou daquele jeito. Ela ficou daquele jeito, porque eu disse pro doutor que ela tinha dito que aquele tal de raio era o meu retrato.

Da sala do doutor pra casa, a mãe foi brigando comigo:
- Maria Antônia, tu é isso. Maria Antônia, tu é aquilo. Maria Antônia, pra lá. Maria Antônia, pra cá...

Quando chegou em casa, a primeira coisa que ela fez foi ligar pro papai e fazer fuxico de mim pra ele. Ela ria e falava mal de mim. Falava mal de mim e ria.

Antônio Filho tava na cozinha com a babá. A babá tava dando suco pra ele. Ela era, como disse o pai, a mordoma dele, mas  ela não viu e não limpou a merdomia fedida de Antônio Filho que tava perto do fogão. Era uma merdomia porque o gato miava perto dela e quase comia ela.

Eu quis fazer uma boa ação. Fui no banheiro. Peguei um pedaço de papel higiênico e juntei a merdomia. Fui lá na sala, onde mamãe tava. Coloquei a merdomia enrolada no papel em cima da poltrona. Falei cheia de razão:
- olha aqui, mãe, o teu filho querido fez uma merdomia na cozinha e a mordoma dele não ajuntou. Agora, eu trouxe a prova do crime pra ti. Tá em cima da poltrona, já sujou a poltrona, porque a merdomia tava tão fedida que nem o papel quis ela: o papel higiênico saiu correndo pra debaixo da mesa e deixou a merdomia em cima da tua poltrona.

Mamãe deu tanta palmada no meu bumbum que eu chorei. Antônio Filho também chorou. Acho que ele pensava que, depois que mamãe me batesse, fosse bater nele. Que nada! Só deu pra mim. Ela me colocou aqui, de cara pra parede. E eu, pra não ficar sozinha de cara pra parede, trouxe a caneta da mamãe sem ela olhar. O problema é que a tinta da caneta caiu toda na parede.

Por isso, Parede, que eu tô te contando essa minha história. Eu acho que depois que Antônio Filho nasceu, papai e mamãe não gostam mais de mim. Ficam todo o tempo me recriminando. Eu tô com o ouvido ardido de ouvir todo o tempo a mesma história: “cuidado com teu irmão”, “ele é pequenino”, “não bate no teu irmão”, “não vai machucar teu irmão”, “não  faz isso, não faz aquilo.... Tudo por causa de Antônio Filho.

Antes de Antônio Filho nascer, eu era a queridinha do papai, a filhinha linda da mamãe. Agora eu só vivo no canto... no canto da parede.
Sempre, de noite, papai e mamãe me davam a bença e um beijo. Eu dormia com o Senhor do céu e com os anjos. Já o Antônio Filho só dorme  com papai e mamãe, no quarto deles. Pode? Ele faz pipi na cama, chupa dedo e, mesmo depois que começou a andar,  ainda toma mingau. Isso é outra coisa: depois que ele aprendeu a falar, eu tenho que ficar calada e rir das graças sem graças que Antônio Filho diz.

Outro dia chegou uns amigo do pai aqui. A mulher do homem fez logo carinho para Antônio Filho, dizendo que ele era lindo.  Papai feliz disse assim:
- filhão, diz pra moça que você é tímido.
Antônio Filho falou com cara de puxa-saco:
Eu xou...  time do...  Vaco!

Só porque o pai é vascaíno...  Eu queria ser flamenguista como a mãe, mas ela disse que eu sou Botafogo, só porque eu ia, um dia desse, botando fogo na casa. A culpa foi de Antônio Filho. Ele tava chorando, dizendo que queria mingau. A mãe e a babá tavam no quintal, então, eu coloquei o papeiro no fogão e fui botar fogo debaixo dele... Mas isso já faz tempo e eu já até esqueci qual foi o meu castigo.

Agora eu tô de cara pra  parede, mas ainda não consegui ver o teu rosto, Parede. E a caneta que eu tirei da bolsa da mãe já não tá escrevendo de tanto eu empurrar ela em ti pra descobrir onde tá teu ouvido. Será que tu tá me escutando, Parede?.

Quando penso que a mãe pode tá escutando nós, me dá uma dor de barriga no meu coração. Ela pode não gostar e me dar novo castigo. Tu é testemunha que eu tô quietinha aqui no meu canto. Mas quando ela vier lá da cozinha, ainda vai dizer que eu fiz alguma  malcriação.

Ainda bem, parede, que quando ela chegar e te olhar toda suja de tinta azul e me olhar com as mão suja de azul, ela vai pensar que eu cortei o dedo e que essa tinta é meu sangue. Vai me tirar do castigo e me levar pro médico, carinhosa, como sempre fica, quando eu tô doente. Ainda bem que meu sangue é azul. Foi a vó quem disse....

¨* escritora maranhense
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 19/06/2010
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