Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
O BICHO

Manuel Bandeia foi mais feliz do que eu, porque ele viu um bicho devorar os detritos de uma lata de lixo e descobriu que era um homem. E eu, lamentavelmente, vejo o homem devorar o próprio homem e descubro que é um bicho...

Um criança de nove anos foi estuprada por um homem e o estuprador fez pior que o cachorro. Homens “costuraram” a boca de um semelhante com um arame e introduziram um relógio no seu ânus, e os torturadores foram mais cruéis que as feras. Um jovem morreu depois de uma partida de futebol, cheio de facadas, e eu queria que seu assassino fosse uma espécie em extinção.

A mim não importa a classe social a que pertencem as vítimas, não importa o grau de instrução, não importa o cargo que ocupam ou ocuparam em pequenas ou grandes empresas, não importa que sejam ricas ou pobres. A mim importa que sejam seres humanos e que como seres humanos deveriam ser tratadas, dignas do respeito, principalmente do respeito à vida.

Lamento o abuso dos acontecimentos, suas tragédias e a desumanidade com que certos fatos estão sendo traçados; A descompostura do comportamento social; e a inércia das autoridades, mesmo depois que o tempo passa e que outros fatos, igualmente desumanos, são colocados nas páginas de jornais. Lamento o exemplo da própria Polícia, que também mata inocentes e culpados, antes de um julgamento, a mesma Polícia que justifica os seus maus feitos ante uma CPI que, como tantas, não chegará a lugar algum. (apostam?).

Que país é este em que o homem estraçalha o semelhante, torturando-o, matando-o e continua livre para posteriores homicídios, enquanto os seus processos, engavetados, vão dando margem a novos feitos? Procuro a Justiça. E encontro os três poderes: o Legislativo a criar leis que só favorecem a seus mentores. O Judiciário julgando-as lentamente; o Executivo sem executá-las. Onde estão os homens que não assumem os seus papéis de poderosos, exceto em prol de interesses próximos e/ou próprios?

Até quando eu terei que dizer que moro num país de desigualdades, de injustiças, de medo, de misérias, de falta de vergonha?  Até quando eu sonharei com a civilização, enquanto me descubro nesta selva de macacos vestidos, que confeccionaram suas roupas com a falta do pudor, com a mediocridade, com a pusilanimidade, com a maldade?... E será isso o ser humano?

Não seria preferível que fôssemos pequeninas formigas, que vivem em sociedade e sabem repartir o pão e sabem trabalhar para o próprio sustento? Que mal haveria se fôssemos os beija-flores, que sabem sugar o néctar com um ato de amor? Se fôssemos as pequeninas abelhas, aprenderíamos com a rainha, ou mesmo com o zangão, o respeito pelas leis de uma sociedade, mesmo que a sociedade seja uma colméia. Que vexame seria se fôssemos pequeninos ratos? Nenhum!... Que eu nunca vi um rato matar outro rato... Nunca vi!....
Aqui tudo é selvageria, tudo aqui é uma colheita deplorável de débeis que se dizem homens. Não! Não quero a justiça, que a justiça virá com a sua lentidão; às vezes, torta; outras vezes, amputada; e, quando sempre, não chega, porque falta dignidade. Não quero essa justiça. Quero acordar de manhã, tomar o meu café ao som dos bem-te-vis, das andorinhas, sem o desgaste das manchetes policiais e políticas. Quero uma máquina que acabe com a violência!....

Eu quero ser gente e conviver com gente, para eu não ter inveja dos outros animais, irracionais, que se assustam com tudo que o homem vem fazendo. Eu queria que tudo começasse de novo, com a perfeição da vontade divina. Mas, se assim já não pode ser, que o Homo Sapiens já inventou a bomba atômica e, ainda hoje, destrói sua espécie em países do terceiro mundo, por favor, Senhor, se outra vida eu tiver, não me deixes nascer homem!... Eu quero nascer um bicho qualquer, mas não me deixes nascer humano!...

Publicado pela primeira vez no Jornal O Imparcial, 06.06.1995.

Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 11/07/2010
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