EM NOME DE MINHA ANGÚSTIA
Sempre que a angústia bate à minha porta, lembro-me desta poesia de Cassiano Ricardo: “Diante da vida fugidia, conservemo-nos serenos. Cada minuto da vida nunca é mais; é sempre menos. Ser é apenas uma parte do não-ser e não, do ser. Desde o instante em que se nasce, já se começa a morrer.” Lembro-me desses versos, porque eles traduzem a temporaneidade, a transitoriedade da espécie humana.
Essa história de viver é complicada, porque a vida é a causa da morte. Logo, a morte é uma conseqüência da vida. Morrer e viver são palavras intrinsecamente relacionadas. Assim, não podemos dizer onde começa uma e onde a outra termina. E isso muito me aflige, principalmente quando olho para o lado e vejo que as paredes já não são as mesmas, os muros já não são os mesmos; as janelas das casas mudaram; os carros que transitam nas ruas são diferentes dos de antes; as ruas já têm outra pavimentação e até as avenidas viraram enormes viadutos que levam a vários lugares, muitos dos quais, estranhos, quando até os lugares, antigamente, eram poucos, pequenos e conhecidos de todos nós.
São Luís, por exemplo, São Luís mudou demais. Antigamente era uma ilha grande, grande mesmo, porque cheia de verde. As praças eram verdadeiras ágoras, feitas para o encontro dos pássaros e dos poetas. Hoje, a Upaon-açu cresceu de tal forma que, dentro dela, sentimo-nos distantes, distantes de suas ladeiras, de sua aparência colonial, de seus sobradões antigos, os quais só encontramos no antigo centro. Tudo ficou descentralizado, inclusive os amigos, os conhecidos. Outrora, víamos com freqüência os nossos vizinhos. O que era uma ilha grande, agora é um arquipélago, porque ilhas são os homens que nela habitam, cercados de solidão por todos os lados.
Esta semana, quando li nos jornais a notícia da morte do eminente advogado Clineu Coelho, percebi que, com o passar dos dias, separamo-nos de nós mesmos, das pessoas com as quais mantivemos uma íntima relação de amizade e de convívio. Clineu Coelho era uma relíquia sentimental do meu passado... Um advogado brilhante e humanitário. Um intelectual que cultuava frases filosóficas e poesias memoráveis. Pensava como um causídico e sentia como um poeta.
Amigo da família, inúmeras vezes freqüentei sua casa. Nos meus tempos de meninice, meu pai, de vez em quando, tirava um pouco do nosso domingo para levar uma prosa com Clineu, naquela sua casa grande, abraçada por um jardim enorme, ali, perto do Lítero Recreativo Português. Lá, estava a nos esperar, com doces e sucos, dona Dina. Na verdade, ela era o melhor doce da casa, um doce de pessoa, que conversava com a minha Plácida. Eram duas plácidas trocando idéias, enquanto esperavam a prosa do Carlos e do Clineu acabar.
O escritório de Clineu ficava na rua do Sol, ao lado do Colégio “Nina Rodrigues”. Carlos Cunha e Clineu também proseavam no decorrer da semana. Ora na lanchonete do Almir, ora no seu próprio escritório advocatício, ora no Colégio, ora na João Lisboa, ora entre doses de luares e de estrelas nas noites boêmias do Hotel Central e Moto Bar... De quando em vez, eu ouvia um chamar o outro de irmão. Era uma amizade feita entre poesias e petições jurídicas, aulas e audiências, domingos e segundas. Antigamente, também, as amizades faziam parte do cotidiano, e as pessoas se respeitavam, até quando brincavam. Os amigos estavam presentes em todas as horas. Hoje, até as horas se ausentam, como se houvesse uma fenda no tempo pela qual passado, presente e futuro escapam sem deixar vestígios.
A morte de Clineu me angustia muito!... A morte de Clineu me angustia de tal forma que as minhas palavras saem secas de dentro de mim. Nem as lágrimas conseguem molhá-las. A aridez está no meu estado de espírito e no espírito deste Estado. O Maranhão perdeu um homem de valores profissional e humano. Perdeu também parte da autenticidade da história cultural de seu povo. Sim, a cultura do Maranhão, em sua dinamicidade, vai perdendo paulatinamente a sua identidade primitiva. Morreram Clineu, Waldelino Cécio, Alexandre Júnior e tantos e tantos outros maranhenses respeitáveis!... E o meu medo é ver exaurir da curta memória do povo as histórias que eles fizeram e as histórias que eles contavam. Enquanto cresce o número de jamaicanos, os nossos atenienses estão partindo em busca da Grécia de Deus. Sem muita delonga, não vai mais haver a lembrança do tempo em que o Maranhão ainda era Atenas Brasileira. Não haverá discursos nos bares, poesias nas praças, poetas nas ruas, livrarias nos becos, nem advogados como Clineu....
Quando li nos jornais a notícia da morte de Clineu Coelho, lamentei o tempo que perdi por não inventar prosa aos domingos para trocar com ele e encher minhas filhas dos doces de dona Dina... Era um amigo de verdade!.... Quando meus irmãos e eu ficamos órfãos, vi nossa tristeza no semblante dele. Tentando conter a ausência do irmão que perdera, criou palavras de resignação para nós - os filhos - que ficávamos nesta vida dissimulada...
Agora, foi a vez de Clineu partir. Não tenho uma palavra de resignação para dar a Dona Dina e ao seu filho!... Não tenho uma palavra de resignação para dar a mim mesma!...
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 11/07/2010