Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
EVA

Entrei na sala de aula. Havia uns quinze guris fardados. Pareciam anjos esvoaçantes. Dei-lhes uma “boa tarde” estridente para trazê-los de volta às carteiras e ao silêncio. Olharam-me curiosos. Eu era a nova “tia”. Expliquei-lhes que a professora estava doente e que eu iria substituí-la provisoriamente. Era uma turma de crianças em fase de alfabetização. Não poderia dizer que elas não sabiam ler. Já liam o mundo, as pessoas... Eva, uma aluna franzina e sapeca, leu-me assim que cheguei. Disse que eu era uma “tia braba”, porque eu tinha uma voz “altona” e uma “cara zangada”. Em resposta, dei-lhe um sorriso e um beijo sobre os cabelos, como se eu quisesse ser relida, dentro de um contexto diferente do anterior...

Terminada a aula, todos saíram. Eva permaneceu na sala. Guardava meticulosamente as letras do seu alfabeto, feitas à cartolina. Antes de sair, deu-me três letras soltas do seu alfabeto desmontado: V-A-E.. Isoladas, as letras não tinham significado algum. Imaginei que a letra V representasse  vitória. Lembrei-me, contudo, que V também é o início da vaidade, da vergonha, do vazio...Depois de uma longa tentativa de leitura dinâmica, fiz o que qualquer professora já o teria feito; articulei os fonemas: Eva. Ali estava seu nome. Deduzi, então: Eva releu-me.Gostou de mim Por isso, presenteou-me com sua amizade, através de um signo verbal. O seu presente era muito significante e, dentro dele, havia um significado enorme...

Mas quem era Eva? Na Secretaria, encontrei seu dossiê. Ela era órfã de pai e mãe. Morava com uma tia numa invasão. Já tinha dez anos e se alfabetizava tardiamente por mero descaso de terceiros. Estudava num colégio particular de classe média, porque ganhara uma bolsa de estudos durante o período eleitoral. Era conhecida na escola pelas suas traquinagens. Estudava no turno vespertino, porque em todas as manhãs ajudava a tia a vender aves abatidas na feira.

Na sala dos professores, mais precisamente na porta do meu armário estreito e alto, colei verticalmente as três letras: E-V-A No dia seguinte, pedi aos alunos que formassem palavras a partir da palavra A – M – A - R. Dentro de uma metodologia aplicável às suas idades, fi-los entender que aquelas letras representavam sons articulados que, numa relação sintagmática, interagiam de tal forma, que delas fluíam outras palavras dotadas de novos significados. E foi assim que as crianças recriaram o seu vocabulário: Rama, arma, Mara, aram... Eu queria que elas entendessem que a relação entre as palavras era tão forte que mexia com a interação do ser humano. Por isso,  ama-se a Deus, Ama-se o próximo, ama-se o sexo oposto, ama-se... E cada aluno foi colocando o verbo amar dentro do seu próprio contexto: “eu amo meu cachorro”, “eu amo um picolé de abacate”, “eu amo brincar”, “eu amo estudar”, “eu amo comer”, “eu amo minha coleguinha”, “eu amo o pai e a mãe”, “eu amo a vovó”, “eu amo  a professora”...

Até então, Eva  não havia dado exemplo algum. O pequeno Ricardo  fez dela um exemplo. Ele disse em seu convencimento: “Eva não ama ninguém...” Percebi, então, que Eva era um texto mal interpretado, porque estava fora do seu contexto. Se as palavras, para  traduzirem um significado, dependem de um contexto, imaginem o ser humano!... Quantas vezes o homem não se sente um  estranho no ninho, uma palavra solta, escrita num quadro-negro? Era assim a pequena Eva. E, até então, ninguém havia feito uma análise de seu discurso travesso. Tentei explicar ao pequeno Ricardo que Eva era uma criança igual a ele.

Era cedo para aqueles alunos entenderem a complexidade do verbo.Guardei, dentro das minhas convicções, que o verbo amar não é intransitivo; amar é um verbo essencialmente transitivo, porque se transmite e se transforma. Numa relação de amor, ora somos sujeitos ativos, ora sujeitos passivos. A gramática não consegue impor a regência verbal, quando o verbo é o sentimento. O verbo está dentro do homem e é regido conforme os seus valores.

Ricardo entendeu que Eva era uma criança igual a todas as outras da classe, quando lhe disse pausadamente:  “Eva ama, mas também quer ser amada”... Nesse ínterim, a menina, finalmente, deu seu exemplo:  “eu me amo, professora”.  Aquela frase ratificou minha tese de que também temos nossos sujeitos reflexivos de que dependem os nossos sujeitos ativos e passivos.

O barulho da sirene desconcentrou as crianças. Mas concluí a lição, dizendo, à luz da receita bíblica, que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Enquanto a turma se despedia alegre e esvoaçante, percebi que eles só entenderiam o resto da lição, ora silente nas minhas reflexões filosóficas, quando crescessem,  época em que descobririam que dentro de nós há muitas vozes: a voz ativa, a voz passiva, a voz reflexiva, das quais somos agentes.

Eva foi a última a sair da classe. Deu-me novamente as três letras, desta vez, ordenadas: E – V – A. E segredou-me que aquela A/V/E que me havia dado no dia anterior, era uma, entre as poucas amigas que tinha, as quais eram colocadas no seu quintal para serem abatidas na feira. Interpretei  que Eva amava as aves.

Quando cheguei à sala dos professores, um colega perguntou  por que eu havia colocado uma dupla palavra na porta do meu armário. Ele não sabia se lia de cima para baixo: Eva; ou se lia de baixo para cima: Ave. Mas foi incisivo na sua interpretação: “ou esta escola é tua gaiola, ou é teu paraíso”. Aquela leitura do meu colega era mais um  campo semântico desconhecido, envolto às palavras geradas a partir das três letras que Eva me dera. E ele estava certo. Ele poderia entender as palavras conforme o seu repertório. Afinal, todo leitor é co-autor do texto que lê, porque todo leitor é capaz de gerar interpretações em conformidade com o seu entendimento, ainda que as interpretações não se esgotem numa única leitura e não correspondam à intenção do verdadeiro autor. Por isso, existem a denotação e a conotação.

Foi então que descobri que não podemos expor nossos textos sagrados a qualquer leitor. E não caberia a mim expor a pequena e sagrada Eva, na porta do meu armário. Por esse motivo, falei instintivamente: “é ave! Mas não é a ave sinônimo de pássaro. É a interjeição! Ave! Uma saudação. Eu só queria saudar os colegas.”
Quando fiquei sozinha na sala dos professores, arranquei a palavra do armário. Guardei-a Afinal, as palavras dizem o que o homem sente e o que o homem não sente; o que o homem pensa e o que o homem não pensa; o que o homem quer ouvir e o que ele não quer ouvir; o que o homem quer dizer e o que ele não quer dizer. O signo verbal tem dupla face, e essa dicotomia cria situações inusitadas. Entrementes, o não-dito também é deveras  significativo. Mas isso é um outro texto....
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 22/07/2010
Comentários
Site do Escritor criado por Recanto das Letras