Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
NO DIA DOS PAIS
Wanda Cunha e/ou Wanda Cristina

Pedi emprestado o sorriso da vizinha para fazer esta crônica, minha vizinha que se dirigiu bem cedo à casa dos pais, para comemorar o domingo. Pedi emprestado a euforia que ela sentiria, na Casa Grande, ao encontrar a varanda cheia de irmãos, com abraços largos para agasalhar o enorme carinho do homem que faz jus ao dia de hoje. Pedi emprestado à minha vizinha a maciez dos cabelos brancos que ela encontraria sobre o encosto da cadeira de balanço; aquele ar de serenidade e de amizade; aquela fisionomia resoluta de um gigante que, com ternura, criou seus filhos.

E nem sei por que pedi emprestado à minha vizinha os momentos que ela teria neste domingo, ao lume do aconchego daquele que teceu seu futuro e direcionou sua vida, se eu mesma não consigo emprestar a minha orfandade aos meus irmãos...

Assim, deixei a crônica por fazer, sem a mínima condição de dar a ela a festividade que o dia propicia. Em contrapartida, o único texto que consigo redigir é o eco do silêncio do meu pai, enquanto uma dor incontida atravessa o deserto da minha alma desolada, aonde o pôr-do-sol chegou mais cedo.

Mas, com a graça de Deus, um arco-íris atravessa o meu semblante, colorido pelas lições de lealdade, dignidade e justiça, deixadas por meu pai. E entre os momentos equidistantes, revejo o acendedor das auroras que luminava a minha infância com o seu pregão de idealismo e persistência, enquanto ia ao trabalho “caçar estrelas verdes” aos filhos e aos discípulos; e cujo suor era colocado todo dia na chaleira para passar  meu café da manhã.

Depõem contra a história os que tentam olvidar as lutas que ele travou em prol das grandes causas. Um guerreiro valente que nunca se curvou diante dos poderosos, embora chorasse diante da televisão ao assistir a um filme que mexia com a sua sensiblidade de “menino grande”.

E eu pedi emprestado o sorriso da vizinha só para fazer esta crônica, sem saber que eu mesma emprestei meu sorriso àquela que eu fui e que, hoje, sinonimiza seu próprio epitáfio. Apesar de não entender o pacto egoístico que a vida fez com a morte, incorporo a lápide de saudade na qual me transformei, como a descobrir que ela não é apenas um sentimento que exprime o vazio ou o perdido; a saudade é um sentimento que exprime a eternidade do ter e do conviver...E, entre os pirilampos da recordação, congelo as imagens dos momentos vividos, e faço da felicidade um eterno VT, e faço da morte uma mera utopia...

Hoje, na minha rua, tudo é silêncio. Todos foram passar o dia ao  lado dos heróis que lhes deixaram a herança dos cromossomos. Todavia, mesmo com minhas moléculas de DNA labirintadas no orfanato das minhas células, encaro o domingo com a esperança de rever meu pai. Improviso um discurso para a sua volta. Sei que ele chegará cansado por combater as desigualdades; sei que ele chegará com os cabelos desalinhados por criticar o sistema; sei que ele chegará com o semblante angustiado por descobrir que o respeito está sendo desrespeitado. Mas sei também que, apesar dos entraves, o seu espírito irá verdejar minha esperança e devolver minha paz. Ele pedirá que eu não sinta inveja da minha vizinha que saiu bem cedo para comemorar o Dia dos Pais e me fará entender que a morte é uma mentira da carne. E, em clareando o espaço sideral com o seu espírito, ele acabará sendo meu discurso e dará a esta crônica a festividade que eu não soube redigir.

(Wanda Cunha é filha do escritor, educador e jornalista maranhense Carlos Cunha)
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 10/08/2010
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