OLHOS DE CONCEIÇÃO EVARISTO: OLHOS QUE FAZEM CHORAR
WANDA CUNHA
Olhos D’Água, de Conceição Evaristo, publicado pela Pallas, Rio de Janeiro, 2018, 1ª Edição, 8ª reimpressão, é um livro de quinze contos nos quais a autora trabalha um tema em demasia humano e, paradoxalmente, desumano: o ser, na absurda condição de viver em desigualdades iguais com outros seres de sua mesma espécie. No começo, tem-se a impressão de que as personagens femininas são as únicas protagonistas de todas as tramas, mas, depois, verifica-se a preocupação da autora em trabalhar um assunto mais abrangente, em que os brasileiros afrodescendentes representam uma tríade do gênero humano: a gente mestiça, a coisa social e o bicho econômico. Ela matiza e tematiza o sofrimento humano com o lirismo com que borda o texto e a tragédia extraída do cotidiano urbano.
O livro tem início com uma poética que brota da voz da narradora de “Olhos d’Água”, o conto que dá título ao livro. É sublime e curioso o início do texto que projeta quase toda a narrativa sobre a única ânsia da personagem-narradora: descobrir a cor dos olhos de sua mãe. Essa teima de buscar a cor dos olhos de sua mãe vai alinhavando, com sabor de quero mais, o enredo e só vai se dissipar quando a personagem retorna à casa materna e é recebida pela mãe aos prantos. “Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz” (p. 18). É quando ela descobre que a cor dos olhos de sua mãe era de cor de olhos d’água. Mas esse transbordar de emoções que salta aos olhos não termina por aí. Ao final da narrativa a personagem-narradora, também na condição de mãe, é surpreendida pela pergunta de sua filha “- Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?.”
Assim, todos os contos são relatos de sentimentos que promovem a umidade nos olhos do leitor. As personagens que trazem, na pele, a marca de identidade de gênero feminino são Ana Davenga (p. 21/30), Duzu-Querença (p. 31/37), Maria (p. 39/42), Natalina (p. 43/50), Salinda ( p. 51/57), Luamanda (p.59-64), Cida (p;65-70), a pequena Zaíta (p.71-76). Os personagens masculinos também dão azo à proposta de Conceição Evaristo de mostrar o outro, no topo da vida animalesca que lhe fora reservada. São eles: Di Lixão (p.77-80). Lumbiá (p.81-86), Kimbá (p.87-94) e Ardoca (95-97). É um livro de austeridade e alteridade, porque se trata da severidade da vida se contrapondo a um olhar especial da autora sobre o outro, ou melhor, outros. Esses outros são produtos da periferia urbana, vestidos de fome e miséria, representando ora uma doméstica linchada, ora um prostituto e/ou prostituta, ora uma mulher de traficante, ora uma esposa mal amada, ora um pequeno vendedor ambulante e até crianças que ainda não guardaram seus brinquedos.
Ana Davenga, por exemplo, conheceu seu homem na roda de samba. Sem saber do que ele vivia, mudou-se para o seu barraco. Foram felizes, até que ele fosse morto pela polícia. Ela, também, na cama, “metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga”. Já Duzu-Querença, seus pais a deram para uma senhora cuja casa tinha muitos quartos. No começo, Duzu-Querença, ainda menina, ajudava na lavagem e passagem das roupas e limpava os quartos. De tanto abrir e fechar os quartos, Querença transformou-se em uma das moças que ali viviam e para as quais levava roupa lavada e engomada. Duzu cresceu naquele mundo de prostituição. Virou mãe, avó. Quis morrer como um pássaro: “levantou voo e aterrissou”. Maria, empregada doméstica, saíra da casa da patroa com sobra de comidas pra alimentar os filhos. Quando pegou o ônibus, encontrou um antigo amor, que não via há anos, pai do seu filho mais velho. Trocaram algumas palavras. Ela, sem ouvir direito, adivinhou que ele mandara um carinho ao filho. De repente, o pai de seu filho e outro homem assaltaram todos do ônibus, menos Maria. Quando os assaltantes foram embora, os passageiros, pensando que Maria era cúmplice dos bandidos, dilaceraram seu corpo, pisotearam-no.
Quantos filhos Natalina tem? – Natalina teve quatro filhos, mas só o quarto era seu filho. “Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte”. Beijo na face conta e história de Salinda, mal casada, vigiada pelo marido, que se apaixonara por outra mulher. “Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza”. Luamanda, desde os 13 anos, iniciou sua vida sexual. Foram vários amores, até experimentou o amor em braços semelhantes aos seus. Já tinha cinco filhos. Já ia ser avó. “Acordou para o encontro que estava para acontecer (...) Apressou-se. Podia ser que o amor já não suportasse um tempo de longa espera”. O cooper de Cida conta a estória daquela que vivia de negócios e sentimentos de urgência. Era um ser programado pra fazer tudo. Até que de repente percebeu que deveria dar um tempo pra si mesma.
Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos - conta a história da menina que preocupada em saber onde estava seu brinquedo favorito, saiu de sua casa e foi assassinada em meio a um tiroteio na favela. Em De lixão “havia umas duas semanas que aquele tumorzinho na boca, junto ao dente, doía que ele não podia comer quase nada”. Infeccionou. Foi nesse trauma de dor e de lembranças que a noite transcorreu, narrando a morte do menino que gostava de chutar os latões de lixo. Lumbiá vendia latas de amendoim, caixas de chicletes e até flores. Era tempo de Natal e Lumbiá já tinha visto quase todos os presépios da rendondeza. Seu coração batia a cada presépio que via, admirando o Deus-menino. “Lá estava o Deus-menino, de braços abertos. Nu, pobre, vazio e friorento como ele”. Lumbiá saiu da loja levando o Deus-menino. O segurança tentou agarrar Lumbiá, que fugiu e fora atropelado por um carro. Morreu.
O conto Os amores de Kimbá conta a história daquele que despertava o amor das mulheres e dos homens. Ele, Beth e Gustavo formavam um triângulo amoroso. Beth tinha dinheiro e estava apaixonada por Kimbá; Gustavo tinha dinheiro e fama e também estava apaixonado por ele. Kimbá era pobre, da favela, mas negro bonito, que queria sair da miséria, mas que achava uma sujeira aquela relação. No último encontro dos três, “Os copos já estavam preparados. Ele, com um ligeiro tremor de mãos, ofereceu o primeiro copo à mulher. O segundo ofereceu ao amigo (...) Os amigos estavam na quase morte. Sorvera de uma única vez sua porção e se deitou ali no meio para esperar com eles também.” Ardoca conta a história daquele que que fora assaltado depois de morto. Ele passara mal no trem e fora socorrido por uma mulher. Entretanto, um passageiro entrou no vagão chamando pelo desfalecido: - Ardoca! O desconhecido tomou-o no colo, desceu do trem e o depositou no banco da estação. Todos no trem, já em movimento e quase distante, perceberam que o Ardoca estava sendo assaltado. “Ardoca não tinha mais nada, nem a vida”.
No penúltimo conto “A gente combinamos de não morrer” (p. 99/109), Conceição Evaristo inaugura algo quase sui generis na prosa de ficção: a multiplicidade de narradores numa única narrativa. Vários personagens tecem a teia da narrativa e, cada um, em seu tempo, descreve a sina da família de que são frutos e cujos principais personagens são Dorvi, Bica, Idago e dona Esterlina. Nessa narrativa, a autora mostra que a “morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos”. Ela também pondera que as lágrimas apontam vários sentimentos. O momento forte da trama, que é um drama de ideias alinhavadas por quatro vozes, é quando Dorvi descobre que seu filho nasceu num mundo de desesperanças: “Deveria ter ficado na barriga da mulher, ou melhor, incubado como semente dentro do meu caralho”.
E no mundo de sofrimentos, para o personagem Dorvi o medo incita a coragem. E é nesse discurso dialético que a autora cria um neologismo, ou melhor, um novo sentimento na alma humana: “coragemedo de dor e pânico”. Com frases que tem uma ambiguidade que traduz a efemeridade dos homens que correm atrás dos desassossegos e poder, não há distinção entre gente, coisa e bicho, porque, segundo ela: “Tudo se torna objetos agarráveis: gente, coisa, bicho...” A ambiguidade das palavras têm expressões que traduzem os vícios de que todos foram feitos e para os quais todos retornam: “Quem derramou o pó há de juntar toda a poeira”. Mas também fica a certeza de que daquele do qual se extraem muitas mazelas humanas, também pode brotar o amor. E o que fica patenteado na fala de Dorvi: “da ponta da escopeta também sai carinho”. E, numa visão mais profunda, descobre-se a fragilidade da pessoa humana, quando ele diz: “Olhando o mar lá de cima, vi que pequeno sou eu”. Mas o discurso final de Conceição Evaristo ainda é altruísta: “Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras bocas.
O último conto, “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, é a narrativa das descobertas etimológicas, na qual os nomes de origem africanas se apresentam nos personagens, tentando transformar o destino de cada um, numa esperança contagiante que não deu certo. Mas que ressuscita com o nascimento de Ayoluwa, que significa a alegria de nossas pessoas, nome oriundo da Nigéria, África Ocidental. . Assim, a palavra Amina significa fidedigna, fiel, oriunda da Nigéria da África Ocidental; Malija, a rainha, da Quênia-Tanzânia, da África Oriental; Mandisa, a doce, da África do Sul, todos os nomes carregados de muita esperança. Apesar dos Olhos D’água por que passam os olhos do leitor durante toda a leitura do livro, no final, Conceição Evaristo deixa uma mensagem de esperança, por meio do nascimento de Avoluwa: “ela veio não com promessa de salvação, mas também não veio para morrer na cruz. (...). E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução.”
Do ponto de vista da linguagem, Conceição Evaristo desafia a língua e vai reconstruindo palavras que possam dar o verdadeiro significado que almeja alcançar nas suas descrições. É o que se consolidou como escreVivência, E, assim, nascem frases e vocábulos de efeito encantador que transformam a prosa numa poesia cheia de surpresas e inventividades linguísticas: entrar-entrando, buraco-saudade no peito dele, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas; o gozo-dor entre suas pernas lacrimevaginava no falo intumescido do macho menino; navegação íntima de seu homem no buraco-céu aberto de seu corpo; o amor é um poço misterioso onde se acumulam águas lágrimas. Ela também recria um zoomorfismo social que captou no mundo favelado: “As crianças e os cachorros se comprimiam dentro das casas”. Logo, não foi à toa que o livro ganhou o Prêmio Jabuti em 2015. Também não foi à toa que nós chegamos até aqui para contar esta prosa.
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 09/08/2019
Alterado em 09/08/2019