Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
ONDE DEIXEI MINHAS LEMBRANÇAS?


WANDA CUNHA


Detesto o espelho. Detesto o espelho... Ele é sombrio, ele é cruel, ele é crítico, principalmente quando estou à procura de minha dentadura e que ele me defronta impiedosamente a fazer-me careta. Detesto o espelho, como detesto a minha bengala. Aonde ela foi? Ela acha que dependendo dela e, por isso, me massacra. De tempo a tempo se esconde, como se eu ainda fosse uma menina pra brincar de preto-fugido. Detesto também os meus óculos. Mas deles já não sinto tanta falta. Já não preciso olhar as pessoas, porque elas também, com óculos ou sem óculos, já não me olham.
Mas onde estão os meus chinelos? Eu os deixei aqui, debaixo da minha rede. A minha rede? Gosto da minha rede. Ela foi feita pra mim e me fizeram pra ela. A gente, como diz minha neta Aparecida, a gente se curte...Ontem à noite faltou luz e eu não tinha nenhuma lamparina. Só tinha o fósforo dentro do meu bolso, o fósforo e um vintém. O fósforo, eu tinha guardado pra fazer o fogo do fogareiro e passar café para as crianças. O vintém... acho que guardei o vintém para comprar um quarto de manteiga.
Aposto que minha filha está na cozinha, falando mal de mim. É o marido dela quem põe meleca naquela cabecinha-de-camarão. Depois que ela se juntou com o pai dos meus netos, a minha vida virou um suplício. Mas não detesto meu genro. Tenho, sim, muita pena da minha filha que casou com um prevaricador. Mas ele ainda é melhorzinho do que as duas alopradas que casaram com meus dois filhos abestalhados. Elas mandam neles. Pintam a saracura. No meu tempo, homem mandava em mulher. Meu falecido marido sempre foi o dono da situação. Eu tinha que lavar, engomar, cozinhar, limpar a casa e cuidar das crianças. Ele trazia conforto pra gente. Era divertido!... Tempos bons!...
Minha mãe dizia que meu falecido marido era um santo e que eu era o altar dele. Quando ele morreu, coloquei luto fechado, duas alianças no dedo e não quis mais saber de conhecer homem. No meu tempo era assim.  Mas hoje está tudo mudado. A mulher do meu filho mais velho, por exemplo, nem esperou o marido morrer. Se  separou do pai de seus filhos para ficar com meu filho. Um dia, tudo se repete, e meu filho vai ficar na rua da amargura.
Achei meus chinelos. Até meus chinelos querem ser iguais à bengala!... E por falar nisso!.... Onde está a tal da bengala? Preciso ir ao urinol. Também não sei onde está o urinol. Eu gosto de deixar o urinol debaixo da rede, mas a minha filha vem e muda tudo de lugar.
Eu sempre arrumei minha casa e, já agora, não me deixam arrumar meu próprio quarto. Meu próprio quarto é maneira de dizer. Na verdade, desde que meu falecido marido partiu desta vida para uma melhor, que vivo emprestada na casa dos filhos. Um dia aqui, outro acolá... Ontem eu estava na casa de quem? Ontem... ontem... ahn, já sei. Eu estava na casa do Tavinho, meu filho mais moço. A mulher dele é uma lambisgóia. Não soube educar meus netos. Pensa que eles me chamam de vovó? Vovó que nada!... Sou a velha chata. Outro dia eu ouvi um deles dizer: “a velha chata já acordou. Ta falando sozinha dentro da rede e não me deixa dormir”. Eles pensam que eu estou caduca e falo sozinha. Eu não falo sozinha. Falo com os meus botões. Se eles falassem com os seus botões e ouvissem os seus botões, certamente que ouviriam melhor e falariam menos baboseira. Eu, não, eu escuto tudo, inclusive os meus botões.
Meu neto mais velho tem mania de falar baixinho só para testar meu ouvido. Acho que estou surda. Finjo que não escuto o que ele está falando. Também, só fala asneira.
Eu disse que estava na casa da minha filha, mas essa rede não é uma rede. Essa rede é uma cama. Agora me lembrei. Estou na casa da Sara. Desde ontem que estou na casa da Sara. Mas ontem... ontem eu não estava na casa do Tavinho?.... Deixa pra lá!... Há momentos em que não sei onde deixo minhas lembranças. Mas lembro que agora estou na casa de Sara. A cama dela é esta aqui, toda arrumadinha. Aonde será que foi Sara? Sara é uma velha que me arrumaram pra ser amiga. Não gosto muito dela. Nós duas dormimos no mesmo quarto. Ela ronca muito, e eu tenho meu sono leve. Por isso, passo á noite acordada. Já me acostumei a dormir com algodão no ouvido. Ainda assim, Sara perturba. Que ronco estrepitoso!... Não sei como ela  consegue dormir com ela mesma.
Essa casa de Sara me dá medo, de grande que é. E como ela tem muitos irmãos!... O Patrício, o José, o Fernando, a Rosária... São muitos. Nem me lembro direito o nome deles. Todos, assim, já cheios de roncos, de rezingas, de idade avançada como a minha. Eu não sei se a casa é de Sara ou se é da neta dela (acho que é neta dela). O nome da neta é Diretora. A Diretora só chama Sara de vovó e agora pensa que eu também sou Sara. Me chama de vovó também. Ontem eu disse a ela: não me chama de vovó. Não sou tua vó.
Tenho achado Sara muito triste. Também, não quer fazer tricô. É preguiçosa. Olha que eu faço tricô desde a mocidade. A gente engana o tempo enquanto enrola o fio. Não é muito diferente do que se faz com a vida. Um nó aqui, outro ali, e forma uma peça já vivida...
Tenho que achar os óculos. Todo dia toca uma sirene. É hora de comer ou de banhar? Já não sei que horas são essas. Mas sei que a sirene tocou, e eu quase não sei ir a lugar algum sem os óculos dos quais eu não gosto. Já não os uso para ver as pessoas, mas ainda os usos para não cair. Não é que eu esteja cega. Depois que a catarata tomou conta dos meus olhos, enxergo melhor, porque não preciso de luz para ver a verdade. Nada é turvo quando vemos com a alma, ainda que tenhamos catarata. Através da alma, encontramos a verdade em toda a parte. Ela entra pelos ouvidos, mesmo quando faz silêncio...
Hoje não quero banhar, não quero banhar nem comer aquela comida de sempre. Mas tenho sede, tenho muita sede. Quero água. Mas também quero ficar aqui no quarto, procurando...procurando... O que foi mesmo que eu perdi? Ontem minha filha tinha me prometido me levar ao cemitério. Há muito tempo não vou ao cemitério. Faz alguns dezembros que o meu falecido subiu aos céus e nem se lembrou de me levar com ele. Foi o único defeito dele, depois de tantos anos de casados. Eu colocava a comida das crianças, mas esperava ele para o jantar. Nós comíamos juntos. Conversávamos sobre o nosso dia... Tempos bons. Eu esperava ele se banhar. Eu esperava ele se deitar. Mas ele não me esperou pra morrer. Foi dolorido. Mas como eu tinha os meus filhos, aceitei o desafio de viver sem ele...
O tempo passou depressa, depois que casamos. As crianças cresceram. E hoje eu já não sei onde estão as crianças. Não sei nem mesmo se Maria se lembra que hoje era dia de me levar ao cemitério. Ela sempre se esquece de tudo, quando lembra daquele carapinhudo do marido. Não tiveram a mesma sorte que eu, os meus filhos!...
Mas onde está Sara? Deve ter levantando no cantar do galo. Ela acorda durante toda à noite. Também fala com os botões, e tosse, e se lamenta, e se desespera. Insulta os filhos todas as noites. Diz que os filhos a abandonaram, que os filhos são ingratos. Eu sempre aconselho Sara: “deixa disso mulher. Os filhos são sempre crianças e nunca sabem o que fazem. Os filhos não são ingratos. Apenas não aprenderam a crescer”. Eles só crescem quando seus próprios filhos já são grandes e que já não precisam de seus pais para serem crianças. Acho que meus filhos ainda precisam de mim, senão, já teriam crescido.
Esses filhos já me deram muito trabalho. Hoje, minha filha é doutora de criança, meu filho Teodoro é engenheiro e o Tavinho, professor. Mas, assim mesmo, ainda me dão trabalho. Quando lembro que Tavinho tem uma asma alérgica, e que a tal da minha nora não cuida dele, fico tão preocupada!... Lembro que, certa vez, veio um médico aqui muito bom. E eu acordei cedinho para pegar a vez. Consultei o menino. O médico passou uns remédios e disse que ele precisava voar, voar em avião, sabe? Através do programa de dona Carochinha, eu consegui um vôo para Tavinho ficar bom da asma. Pode acreditar que ele não ficou bom de todo, mas para o que ele sentia, foi um santo remédio. Já Maria me deu trabalho quando teve sarampo. Quase morreu. Teodoro, o mais velho, esse era rijo. Nunca adoeceu. Mas, certa vez, foi banhar na maré e quase morreu. Passei sete dias e sete noites ao lado do menino no hospital. Eu nem ia em casa banhar. Foram momentos de aflição, mas até desses momentos sinto saudade. As lembranças, por mais penosas que sejam, são um retorno ao passado. E é sempre bom voltar ao passado, principalmente quando o presente é estéril e já não projeta futuro algum.
Acho que o problema de Sara é solidão. Não falo da solidão que é falta de companhia de alguém. Falo da solidão que é falta de lembranças. Acho que Sara não tem lembranças. Ela não fala do marido, dos pais, dos amigos... Tenho a impressão de que Sara sempre foi só. Ela não fala de sua mocidade. Eu, quando moça, fui muito feliz. Participava de tertúlias, quermesses. Ia ao cinema com meu falecido marido e cheguei a ouvir serenatas que ele fazia para mim...
E meus irmãos? Nós éramos dez. Eu era a caçula. Os três mais velhos, Marcos, Marlene e Marcelo, só queriam ser grandes e não gostavam de brincar com os outros sete. Já Marta, Morena, Madalena, Matilde e Mercedes faziam comigo e com o Martinho tudo que os maiores faziam com eles. Martinho e eu éramos os chorões, que viviam pendurados na saia da mãe. Tudo porque ninguém queria brincar com a gente. Por outro lado, eu não gostava de brincar com ele e nem ele gostava de brincar comigo. Só que a mãe, quando se zangava, reunia todos os filhos naquele quintal enorme lá de casa e exigia que fizéssemos uma grande roda. Todos brincávamos de roda. O quintal foi palco de boas brincadeiras e de boas brigas.
Depois que crescemos, tudo mudou. Cada qual tomou seu rumo. Onde é que eles estão mesmo? Isso!... Mercedes casou, depois morreu de parto. Marcos foi servir o exército. Martinho viajou para Brasília. Marta foi...  Onde estão mesmo os meus irmãos? Lembrei!... Todos já se foram... Todos já se foram, como o pai e a mãe, todos foram para a terra do silêncio, exceto Martinho que fez família em Brasília. A última vez que ele me escreveu, eu ainda podia ler, com óculos ou sem óculos. Hoje, de qualquer jeito, já não leio coisa algum. Acho que, por conta disso, ele nunca mais escreveu. Mas se escrevesse, eu mandaria minha neta Aparecida ler pra mim. É a neta mais carinhosa que tenho. Menina inteligente, letrada.
Sara não fala nada disso. Só se lamenta. Acho que o problema de Sara é falta de saudade. Ela não sente saudade do que viveu. Eu aqui na minha rede, quer dizer, na minha cama, dou volta ao passado e vejo o quanto fui feliz. Por isso, não posso me reclamar do agora. Quem um dia foi feliz, não precisa ser feliz de novo, basta apenas lembrar do que foi... Tenho sede, tenho muita sede.
Agora lembrei. Na noite passada, Sara não acordou de noite, nem tossiu, nem insultou os filhos e parou de roncar num suspiro. Ouvi uns lamentos. A diretora tentou acordar Sara, mas não conseguiu. Depois mandou chamar os seus filhos ingratos. Os filhos não eram tão ingratos. Ouvi os choros de alguns deles. Pareciam lamentar profundamente o fato de Sara não ter avisado que ia morrer. Sara dormia no mesmo quarto que eu e também não me avisou que ia morrer ontem à noite. Fez igual ao meu falecido marido, saiu de mansinho desta para a melhor... Foi isso mesmo, Sara morreu. Agora lembro. Sara morreu. E eu estou sozinha neste quarto.
Eu queria esquecer. Mas sei que hoje é dia de visitas, porém não é de visitas ao cemitério. Hoje, eu não vou ao cemitério visitar meu falecido marido em companhia de minha filha. Minha filha é que vem hoje me visitar. Será que estou no cemitério? Não, não quero lembrar onde estou. Afinal, pra que saber onde estou, se onde estou é um cemitério de lembranças? Tenho sede, tenho muita sede.
Agora sei por que a sirene tocou. A sirene tocou para dizer que devemos descer ao pátio, que os nossos parentes queridos estão à nossa espera. Mas hoje não quero ver ninguém, com óculos ou sem óculos, não quero ver ninguém. Vou fazer como Sara, vou fazer como meu falecido marido. Vou dormir mais um pouco, quem sabe, dormindo, eu esqueça de acordar. Tenho sede, tenho muita sede...
Agora lembrei. Meu pai certa vez me disse que as crianças sonham com anjos. Eu estou vendo anjos, muitos anjos. Acho que voltei a ser criança, acho que já estou dormindo. A gente passa a vida inteira separando o passado do presente, o presente do futuro e chega um instante em que tudo é um só tempo. Presente e passado se fundem de uma tal forma que o futuro acaba indo ao encontro dos dois, mesmo que de forma irresponsável, pois sempre chega atrasado e despercebido e, quando chega, já perdeu sua identidade, já não serve pra nada...
Agora vejo anjos, e são os mesmos anjos que vi ontem, quando menina; e que eu queria rever amanhã, se eu ainda tivesse o direito ao amanhã. Tenho sede, tenho muita sede. Vejo mamãe, vejo papai, vejo meus irmãos, meus avós... Olha lá Sara!.. Agora vejo meu falecido marido. Como está jovem e bonito!.... Não preciso mais dos meus óculos, nem da minha bengala. Agora, então, o espelho já não pode mangar de mim. Já não tenho sede. É bom revê-los!... É muito bom revê-los!... Deixei minha filha à minha espera. Mas não tem importância. Ela anda muito ocupada. Outra hora  digo a ela que não fui vê-la porque reencontrei minhas lembranças. Reencontrei, num só tempo, meu passado, meu presente e meu futuro. Estou tão feliz!... Tão feliz!... Reencontrei minhas lembranças... Reencontrei....Reencon...


Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 09/08/2019
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