A MULHER QUE ALUGAVA FILHOS - WANDA CRISTINA
Ideuzina era mendiga profissional. Perdera a mãe quando criança e o pai, aos quinze anos de idade. Esmolava na Praça João Lisboa, onde o pai, quando vivo, engraxara sapatos. Foi prostituída aos dezesseis, por um homem casado que só lhe dera desgostos e angústias.
Aos 39 anos, Ideuzina parecia uma cinquentona. Seu ponto preferido passou a ser o beco do Teatro Arthur Azevedo. Ali, construiu o seu lar, na calçada úmida do próprio anonimato. Fingia extrair leite daquele peito seco e enrugado para dar a cada criança que alugava diariamente.
Certa vez, Ideuzina encontrou o mesmo homem que a seduzira na mocidade. De imediato, ela não o reconheceu. Como era de praxe, lançou aquele mesmo apelo, com as mãos estendidas:
- Dê, moço, uma esmolinha para essa pobre mãe de filho faminto!
O homem de meia-idade, cabeleira branca, dentro de um terno azul marinho, olhou pra mulher e, com uma voz áspera, parecia também não se lembrar da adolescente do seu passado:
- Vai procurar serviço, mulher! Você tem saúde. Pra que ficar explorando os outros? Meu dinheiro, eu não o dou a vagabunda.
Ideuzina reconheceu a voz:
- Muito bem, Jair. Tu não dá dinheiro pra vagabunda. E é isso que sou: vagabunda, porque a primeira vez que dei meu corpo, dei para um cabra safado e vagabundo da tua laia.
O velhão, nesse momento, reconheceu a mendiga. Olhou para todos os lados, receoso de que alguém tivesse presenciado a cena. Mas não perdeu o tom soberbo:
- Você, além de vagabunda, é maluca!...
Ideuzina permaneceu ali, na sua última lembrança do passado, enquanto o velho Jair caminhava apressado dentro de sua distorcida consciência. Mas o que ninguém sabia é que desse amor vagabundo nascera uma garotinha que, provavelmente, hoje teria vinte e três anos.
Ideuzina alugava crianças para fingir que eram suas, enquanto sua filha – a quem dera o nome de Mírian – era considerada filha legítima de Jair e esposa. A pedinte fora empregada da casa do amante, quando engravidou. A mulher de Jair nem tomou conhecimento da traição. Quando a barriga começou a crescer, Jair tratou de levar Ideuzina para bem longe do seu lar. Alugou um quartinho úmido na Rua Vinte e Oito, onde a pobrezinha permaneceu até o nascimento da filha. Após o parto, Jair levou a recém-nascida para sua casa, mesmo porque sabia que sua mulher ficaria feliz com a presença de um bebê, já que não podia ter filhos. Contudo, para a esposa, o marido havia conseguido aquela criança através de um amigo, médico de uma maternidade. E Ideuzina foi jogada às baratas.
Dado o impacto do reencontro, a mendiga esquecera de perguntar pela filha, razão pela qual inundara de lágrimas o rosto do filho alugado, que solidariamente, deixava, entre gritos, seu choro nos ouvidos dos transeuntes.
Passado um mês, Jair reapareceu, com um pacote de roupas e um outro cheio de comidas. Ideuzina ficou espantada. Mas lembrou que “a esmola quando é muita, o pobre desconfia”.
- Minha profissão é ser mendiga, seu Jair. Com essas roupas, ninguém vai me dar esmola. Eu aceito tudo que o senhor trouxer pra comer, mas roupas de sua mulher, não quero, não, senhor.
- Minha mulher morreu há dez anos. Essas roupas saíram agorinha da loja...
A voz de Jair saía entremeada de soluços:
- Eu só quero me redimir dos meus...
Ideuzina partiu a frase que Jair trazia na boca, com a aspereza de uma revolta que parecia secular:
- eu não vou voltar a ter dezesseis anos só porque o senhor se arrependeu. Mas, como tô com fome, fico com a comida.
Jair colocou todos os pacotes no chão, como se colocasse o pedido do perdão que Ideuzina nunca lhe daria. Deu as costas à mendiga. Foi quando, exaustivamente, a voz da mendiga ecoou da calçada:
- E a minha filha?
Sem voltar-se, ele falou meditativamente:
- Ela morreu, Ideuzina, Mírian morreu com dois anos de idade.
No rosto da mãe, a filha parecia ter morrido naquele instante. O filho que alugara, apertou-o de encontro ao peito, como se fosse a sua Mírian. Teve um gesto de mãe, como nunca o tivera. Ela estava labirintada na sua dor, que nem percebera a presença daquela mocinha diante de si, a enxugar-lhe o rosto com um pedaço de guardanapo de papel.
- Eu sou filha do senhor com quem você conversava há pouco. Há alguns dias ele andava estranho. Resolvi segui-lo. Achei esquisito que desse tamanha esmola a uma desconhecida. Qual a relação de vocês?
- Nenhuma. São tantas as pessoas que me dão esmolas. Quanto maior a esmola, dona, maior o coração. Seu pai deve ter um coração enorme.
- E por que chorava?
- A gente chora quando encontra um filho de Deus que ajuda a gente. Mas como é seu nome? – indagou Ideuzina, na esperança de que estivesse diante de sua filha.
- Meu nome é Mariana.
Ideuzina ficou decepcionada. E, se possível fosse, seria capaz de alugá-la só para ser feliz. A mocinha fez duas ou três perguntas. Depois, retirou-se como se nunca houvesse parado ali.
A pedinte ficou mais triste do que nunca. Levantou-se. Carregou tudo que havia conseguido naquele dia cheio de emoções. Desapareceu no canto da Rua da Paz, sem a paz que nunca tivera.
Nos últimos dezembros, o beco do Teatro ganhara novo visual, ante a reforma arquitetônica dada à Casa de Arthur Azevedo, mas os mendigos continuavam os mesmos, contrastando com o ponto turístico e artístico que, soberbamente, não tomava conhecimento do que estava ao seu redor, nem mesmo da Casa de Antônio Lobo, às suas costas. E o interessante é que ninguém nunca mais olhou Ideuzina no beco do Teatro, nem no chão da João Lisboa.
Depois desse episódio, a gente se perguntava se ela encontrou um ponto melhor pra mendigar. A única coisa que se sabia é que Jair morrera do coração. Sabia-se também que a menina Mariana descobriu que nascera, num modesto quartinho da Rua Vinte e Oito, sob o nome de Mírian. Foi quando começou a procurar insistentemente pela mulher que alugava filhos.
No último sábado, Mariana soube, por intermédio de um vendedor de revistas da João Lisboa, que uma mulher de meia-idade, costumava mendigar nos degraus da igreja do Carmo. Mariana resolveu assistir à missa das seis horas no domingo. Era um dia de sol, e o calor sequer respeitava os devotos fervorosos que exibiam suas roupas fechadas e alinhadas.
A esperança de Mariana estava dispersa. Muitas eram as mulheres, vestidas de trapos, sentadas sobre os degraus, com as mãos estendidas e um filho ao colo, pedindo esmola.. Havia, naquela ocasião, uma mulher de cabeça baixa, com os peitos desmamados, entregues a uma criança de aproximadamente um ano. Mariana ajoelhou-se em frente da desconhecida. Qual não foi a sua decepção? O rosto não lembrava o de Ideuzina.
- Vai me dá uma esmola, moça? – questionou a mendiga.
Mariana retirou da bolsa cinco reais. Deu-lhe silentemente. Ao levantar-se, lembrou de perguntar:
- A senhora alugou o bebê pra ficar aqui?
- Eu e muitas outras que aqui estão. Por quê? Vai me prender?
- Por nada!... – respondeu Mariana, ciente de que seria difícil encontrar, entre milhares de mulheres que alugam crianças, a sua mãe.
No final da missa, resolveu meditar. Quando chegou à sua casa, tudo era solidão. Abria livros, fechava livros, assistia a um programa de televisão sem o entusiasmo do passado, até que à tardinha resolveu passear na praia do Olho d’Água. A brisa trazia o cheiro das lembranças que nunca tivera. Descalçou as sandálias, beirando a praia... Depois de muitos raios mornos do sol sobre o rosto, aproximou-se de uma vendedora de coco. Lá estava Ideuzina, com o machado na mão. Falou sem levantar a cabeça:
- quer um coco, dona?
Mariana transfigurou-se. Pálida e trêmula, reconheceu a mãe. Segurou-lhe as mãos:
-Quero uma mãe! A senhora é a mulher que aluga filhos. Quer me alugar?
Ideuzina levantou a cabeça. Pele surrada de sol e angústia. Nada de abraços, nada de beijos. Apenas lágrimas escorriam dos olhos, como se imitassem o fenômeno da preamar. Ideuzina abriu um coco. A voz tropeçava entre soluços:
- Meu leite de peito é a água de coco.
Mariana esboçou um sorriso, enquanto aguardava o canudo:
-Não tem problema. Também, não é mês de maio.
No final do horizonte, o sol anunciava o crepúsculo. Era mês de agosto...
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 11/06/2020