Wanda Cunha, escritora maranhense
Aqui, engraxam-se sorrisos
Textos
A SENTENÇA 

Pedro João entregou-me a petição inicial. Era um beijo de calouro. Eu tinha muitos amores inconfessos, oriundos de um coração não confiável. E um Pedro a mais, um João a menos... todos seriam futuras reclamações de infidelidade. Eu, terrivelmente segura de mim e dos meus atos, só queria deixar danos sentimentais em terceiros, para me sentir amada e desejada, pois o amor que eu nutria por mim mesma ainda era pouco para as minhas ambições.

Quando eu alcançasse meu ápice profissional, quando eu persistentemente subisse os degraus sociais e alcançasse o status, para ser bela financeiramente, debruçar-me-ia sobre todos os rios de dinheiro e poder, e escolheria o rosto de narciso, no qual eu pudesse mirar-me.

Mas Pedro João fez questão de protocolar abraços e juras de amor. Não sei como deixei que ele chegasse lá em casa... Pediu-me em noivado, sentou-se no sofá com cara de tonto e discutiu questões de Direito com o velho desembargador da minha adolescência, de quem sempre fui uma mera enteada.

Calouro, na legitimidade do termo, ele mal sabia beijar, quando o conheci. E os livros de Introdução ao Direito saíram da minha estante já lidos para os seus sovacos. Ele cheirava a leite nos bancos universitários, enquanto eu, sem demora, colei grau.

Uma coisa era certa: ele conseguia me adoçar, quando eu estava amarga. Não que eu fosse uma garota ruim. Ele é que era bom demais para ser verdadeiro e merecia um lugar nos contos de fadas. Eu era autoritária e vaidosa para contracenar com um príncipe encantado. Mesmo assim, permiti que ele fosse o belo; eu, a fera.

Quando ele beirava o terceiro ano de Direito, eu já fazia a Escola da Magistratura. Consegui, sem muito custo, uma assessoria no Fórum. Mas nunca deixei de cruzar joelhos e olhares para outros sapos encantados.

Assim que se formou, pediu-me em casamento. Foi o momento da decisão. Seus fundamentos não eram robustos. Um mero canudo, um escritório caiado na Rua da Estrela, poucos clientes. Indeferi o pedido. Meus colegas mais íntimos deram-lhe o cognome de assessor da assessora. Quando passei no concurso, ele subiu de função: o noivo da juíza. Imaginei: depois seria o marido da juíza, o pai dos filhos da juíza. E aquilo me incomodava, principalmente nos eventos sociais. Todos sabiam de sua inferior condição hierárquica. Mas ele advogava bem as nossas diferenças e já sabia, como ninguém, atravessar petições eróticas na hora dos carinhos. Por tudo isso, tinha procuração para compulsar todas as peças dos meus autos. Mas quando eu estava soberbamente na TPM, eu fazia uns despachos interlocutórios que ele teria que cumprir à risca para não perder a causa que defendia.

Acontece que eu tive que assumi uma Vara no interior. E o noivo ficou cumprindo mandados de saudades. Eu estava ocupada demais para pensar no amor. Mas, assim mesmo, quando eu teria que tomar algumas decisões sentimentais, das quais ele não participava, eu considerava que a culpa deveria ser pro rata.

Acho até que fui benevolente. Que culpa poderia ter eu, se subi meus degraus, e ele permaneceu no térreo? Por isso, ele ficou feliz quando passou para Delegado. Que delegado ele podia ser, se mal conseguia prender meu coração? Talvez ele tivesse razão: eu havia mudado um pouco. Queria ser a todo-poderosa.. E, por muitas vezes, subestimei sua posição de amado e amante. Ele dizia que eu havia extrapolado a minha condição hierárquica e que nos meus ataques de estrelismo, eu queria ser a própria lei. Nesse momento, eu amansava. E dizia entre chamegos mal-enjorcados de fêmea: dura lex sed lex.

A última vez que ele quis me pedir em casamento, eu estava em meu apartamento, despachando com o meu assessor..... Ele não disse uma palavra. Tirou a aliança do dedo, que trazia a marca dos anos de espera. Saiu silente. Nunca mais o vi, até que nos cruzássemos num restaurante. Ele, com um grupo de amigos; eu, com os meus iguais.

Anos já se haviam passado, depois da despedida. Ele estava mais forte e de cabelos grisalhos. Trazia uma aliança no dedo esquerdo. Seus olhos castanhos extasiaram-se assim que pousaram em mim, como se me degustassem prazerosamente, a denunciar que as cirurgias estéticas pelas quais eu havia passado tinham surtido efeito.

Pagada a conta, todos se dispersaram. No estacionamento, seu carro, paralelo ao mesmo, foi um pretexto do destino para um reencontro casual.

Mas ele estava com pressa. Veio para um jantar de negócios. Contudo, queria chegar rapidamente em casa para ver o filho recém-nascido, queria chegar no horário do aleitamento. Achava “divinal” e “puro” a mulher dar de mamar. Pela primeira vez, senti ciúmes. Era delicada e emotiva a maneira com a qual falava sobre os seios cheios de leite da esposa. Enquanto isso, os meus seios esboçavam sobre os decotes minha última operação de silicone, sobre a qual ele não se manifestou.

Por um momento quis anular todos os atos do processo de nossa despedida. Pedi que voltasse para mim. Contudo, o meu direito de ser amada estava prescrito. Foi, então que percebi que havia perdido um grande amor. Foi então que percebi o quanto havia sido cega, burra e egoísta durante tantos longos anos. Foi daí que verifiquei quanto o amava:

- Ama-me!... – supliquei.

- É tarde demais – ele ponderou.

Perdi o equilíbrio:

- Exijo que me ames. É uma ordem.

- Não grites comigo como se eu fosse teu escrivão. Já não me podes tratar como tratas os serventuários da Justiça. Parecem teus súditos. – Ele falou alterado.

Falei mansamente:

- É um direito teu me amar.

- Meu direito agora é ser feliz. – ele completou.

Pensei que pudesse determinar que os seus abraços voltassem conclusos pra mim. Ledo engano.

Ele deu um breve adeus. E arrancou o carro. Pensei que aquela poderia ter sido uma audiência de conciliação. Só agora pude fazer a instrução dos meus atos, que me vieram conclusos para julgamento.

Vistos, relatados e discutidos todos os meus pecados....

Compulsando meus atos cheios de defeitos, vislumbro, através do espelho do meu quarto, meus grandes seios, ora dois litigantes, rigorosamente rígidos de silicone, expostos a uma contenda com a solidão. Alegam que seus direitos de amamentação foram lesados pelo meu estado egoístico. Eu queria extinguir o feito sem julgamento de mérito, por falta de delimitação do objeto (seria a matéria de ordem nupcial, maternal, sexual ou amorosa?). Não obstante, os ociosos lactantes pediram o reconhecimento do vínculo empregatício, com direito aos pleitos de férias em dobro, simples e proporcionais. Mas a solidão apresentou defesa oral, alegando, preliminarmente, a prescrição aquisitiva, com esteio nas provas testemunhal e documental que garantem o seu direito de propriedade por usucapião, ainda que o direito de amar seja imprescritível.

Em parecer, meu coração opinou por mais uma chance de ser feliz.

É o relatório.

Conheço das minhas falhas, porque presentes os pressupostos de admissibilidade do perdão.

Fundamentos da Decisão

Eu mesma, a esmo, reclamo das horas extras que passei em desafeto, sob a livroxada jurídica com a qual pleiteei as prerrogativas da toga. Debaixo dela, escondi o aviso prévio que dei aos meus sentimentos, sem contudo, permitir-lhes o direito ao seguro-desemprego. Magoei aqueles que me amavam. Fui injusta com os que me rodeavam, principalmente quando eu chegava mal-humorada a exigir respeito e medo, em nome do meu poder. Em prol apenas da minha vaidade, deturpei o sentido da justiça.

Posto tudo isso, julgo improcedente minha capacidade de amar...

Quis recorrer da sentença que dei a mim mesma, quando julguei improcedente a minha possibilidade de viver um grande amor. As minhas razões de recorrer foram julgadas desertas. Não depositei no ser amado o respeito e a confiança de que ele tanto precisava, nem recolhi, dentro do prazo legal, as custas do meu arrependimento. Todas as peças do meu processo de mulher foram apensados a um agravo de lamento. Depois de longos anos, ainda não paguei pelos meus pecados de não ter vivido aquele amor como ele o bem merecia. Por isso, rejeitado meu agravo de lamento, meus altos e baixos foram desentranhados da peça recursal: os altos foram encaminhados ao arquivo morto; os baixos ainda hoje tramitam através do semblante amargo que despacho todas as noites, antes de me deitar, frente ao meu espelho.

Novamente, é hora de dormir. Mas acabo peticionando a Deus o direito às vistas de todas as minhas incongruências. Mas a decisão a quem transitou em julgado, transformando as minhas expiações em saudades bolorentas, juris et de jure.

Acabada a fase de execução deste processo de solidão, vou recomeçar. Quiçá, eu terei aprendido amar. Só assim, deixarei as lamúrias dos meus seios para o sutiã...


* Imagem do google.
Wanda Cunha
Enviado por Wanda Cunha em 11/06/2020
Alterado em 11/06/2020
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.
Comentários
Site do Escritor criado por Recanto das Letras